sábado, 27 de março de 2010

Crónica Diária - Rádio Altitude

Na passada quarta-feira, a crónica foi:


"Na ressaca do infortúnio causado pelos temporais que se abateram sobre a Madeira, das 1001 discussões e opiniões sobre o Programa de Estabilidade e Crescimento, que tal como um Robin Hood dos tempos modernos vai congelar aos ricos – ou seja a nós, o povo – para dar aos pobres – ou seja a Banca, os gestores públicos, etc. – dei por mim a pensar em como se relacionam 2 acontecimentos relativamente recentes: o anúncio dos milhões necessários às obras – que não sei se são de reconstrução – da Madeira e a anunciada greve de pilotos da TAP.
Sobre a questão da Madeira, há algo que deve ficar muito claro: num momento de grande infelicidade como o que viveram os nossos concidadãos da Madeira, espera-se do Estado que assegure que ninguém fica desprotegido, sem assistência, sem víveres, sem um tecto. Isto é solidariedade e creio que nenhum português discordará que devem ser feitos todos os esforços para a assegurar. Mas não foi isto que o Governo Regional pediu; o que foi pedido foi que fossem de imediato disponibilizados fundos para repor todas as infra-estruturas danificadas pelo temporal. Cabe então recordar aqui que hoje a Madeira tem um índice de poder de compra superior à média nacional, e muito superior ao do Distrito da Guarda; que beneficia de uma série de benefícios fiscais para todos os seus residentes; que o seu território tem uma zona franca; que os impostos lá recolhidos são receita exclusiva da Madeira e que ainda lhe cabe uma participação nos impostos arrecadados no território continental. Por outro lado, sabemos bem que as consequências do temporal foram potenciadas, nalguns casos, por erros de planeamento territorial, nomeadamente a construção em leito de cheias. Na altura em que se deve reflectir sobre os erros do passado, em que se deve investir no planeamento cuidado, tudo o que nos vêm pedir é dinheiro para iniciar um novo ciclo de betonização do território, e de preferência sem intromissões, em nome da pretensa autonomia. E se sou solidário o suficiente para exigir que nenhum cidadão fique desprotegido face ao infortúnio, a minha solidariedade vacila um pouco quando me pedem dinheiro para construir, construir, construir, sem me poderem garantir que tudo não voltará a repetir-se.
No caso da TAP, a coisa incomoda-me um pouco mais: face aos aumentos salariais propostos pela administração, uma série de trabalhadores, com o pretexto de perderem poder de compra, resolvem marcar uma greve para protestar contra este estado de coisas. A coisa até poderia fazer-me rir se não fosse tão trágica: sabemos que o sector da aviação comercial vive, de há alguns anos, uma grande turbulência, que tem levado inclusivamente empresas tidas como sólidas a situações muito difíceis e mesmo à falência. Sabemos também, por outro lado, que embora seja expectável a perda de poder de compra dos trabalhadores da TAP – aliás como os de tantas outras empresas ou os funcionários públicos – não há nessa companhia ninguém de quem se possa dizer que é realmente mal pago pelas funções que exerce; a selectividade dos seus processos de recrutamento de Recursos Humanos confirma concerteza esta ideia. Por outro lado, existem hoje no mercado da aviação companhias que asseguram as rotas que a TAP também faz, pelo que cada vez fazem menos sentido os sacrifícios que temos de fazer para manter uma companhia de bandeira.
Portanto, nestes 2 casos, o que dá aos envolvidos a ideia de poderem vir exigir mais do Estado num momento difícil como o que atravessamos, e que, tenho para mim, se agudizará ainda durante pelo menos 1 ano, é a concepção que muitos têm do Estado: o de um buraco imenso, de onde se podem retirar fundos indefinidamente e sem limites; o de um big brother a quem tudo podemos exigir, com quem podemos contar em todas as ocasiões, que tomará conta de nós. Para o sui generis presidente do Governo Regional da Madeira, é o Pai a quem se bate o pé e se faz uma birra de cada vez que quer que lhe façam as vontades. Para os pilotos da TAP, o accionista que nunca se cansa de investir mais e mais numa companhia que teima em não dar retorno aos investimentos.
Ora, é esta concepção que tem de ser alterada. É preciso dar sinais claros de que não se pode continuar neste rumo, porque depois quando falta dinheiro, são sempre os mesmos que são chamados a pagar; e desses, uma ínfima percentagem ganha o mesmo que aqueles que agora fazem exigências. Dos que vão pagar, muitos vivem pior que os seus concidadãos na Madeira.
É preciso fazer sentir que não estamos dispostos a embustes políticos que servem para alguns (poucos) se aproveitarem da solidariedade de muitos. "


Nota: entretanto ocorreram alguns desenvolvimentos na situação que abordo, nomeadamente a desconvocação da greve por parte dos pilotos da TAP; mantém-se naturalmente a avaliação que fiz da iniciativa, mas folgo em ver que imperou o bom-senso, de ambas as partes envolvidas.

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